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📚✨ Poe, a Filosofia da Composição e a linguagem invisível


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Em 1846, Edgar Allan Poe publicou A Filosofia da Composição, um ensaio em que desmonta o processo de criação de O Corvo. Em vez de romantizar a inspiração como algo divino ou acidental, Poe defende que a arte nasce do cálculo e da intenção consciente. Para ele:


“Cada um dos passos de uma composição deve ser dado com a precisão e a rigidez de uma demonstração matemática.”

O ponto central do ensaio é a noção de que toda obra deve começar pelo efeito que se deseja causar no público:


“Ao escrever um conto ou um poema, devemos começar com a consideração de um efeito a ser produzido. Mantemos esse efeito sempre em vista e nunca nos desviamos dele.”

Ou seja, antes mesmo de pensar na trama, Poe determinava a emoção a ser despertada — e moldava cada palavra, ritmo e repetição para conduzir o leitor até esse estado.

🎬 No cinema de gênero — terror, suspense, romance, ação — essa lógica continua muito atual. O roteiro nasce com o público em mente: provocar medo, riso, excitação, suspense. E para isso se recorre à linguagem invisível: cortes que parecem naturais, câmeras que colocam o espectador no ponto exato, silêncios que preparam um susto. Poe descreve exatamente esse truque:


“É meu desígnio fazer com que todos os pontos se ajustem a esse efeito, sem que o leitor suspeite do trabalho de artifício.”

Assim como Poe escolheu “Nevermore” pela força sonora e psicológica, o cinema clássico manipula imagens e sons de modo a guiar as emoções de forma imperceptível. O espectador acredita que a reação é “espontânea”, mas está sendo cuidadosamente conduzido.


✨ Mas esse modelo não vale para todo o cinema. A partir do século XX, sobretudo com o cinema moderno e contemporâneo, surgem correntes que se colocam contra a lógica do efeito calculado. Para autores como André Bazin, um dos principais teóricos do realismo, o valor do cinema não está em manipular emoções, mas em abrir espaço para que a realidade se revele diante do espectador. Já cineastas como Andrei Tarkovski, Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni ou John Cassavetes, entre muitos outros, rejeitam a ideia de guiar o público a uma emoção predeterminada.


Preferem propor experiências abertas, poéticas ou reflexivas, nas quais o espectador participa ativamente da construção de sentido.


Nesse espírito, escritores como Virginia Woolf, James Joyce e Jack Kerouac também contestaram a filosofia de Poe, defendendo processos criativos mais espontâneos, ligados ao fluxo da consciência, à subjetividade ou ao improviso. Em vez de buscar um “efeito universal”, valorizavam a singularidade da voz e da experiência.


Portanto, A Filosofia da Composição não deve ser entendida como receita universal, mas como ferramenta de um certo tipo de escrita: aquela que pensa o público em primeiro lugar, que planeja a obra como uma máquina de emoções. Sua importância está em desmistificar a criação artística e revelar que a “magia” pode ser fruto de escolhas calculadas — truques engenhosos que funcionam justamente porque se disfarçam de naturalidade.


Para quem escreve cinema de gênero, Poe continua sendo um aliado valioso: ele lembra que o efeito é o coração da experiência. Mas o cinema moderno e contemporâneo mostra o outro lado da moeda — que também há beleza, potência e verdade em obras que recusam o cálculo e deixam o espectador diante de algo mais incerto, ambíguo e livre.

 
 
 

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